terça-feira, 30 de julho de 2013

13VII13

prato limpo
reprise
no, you should not sleep
um medo que vem à janela

domingo, 15 de abril de 2012

Talvez


Relaxe, meu bem, é um tranquilo arrebol
Esta noite eu não quero luz artificial
Vai bater a saudade da lua sem sol
Ao sentir-me apartado do bem e do mal

Você vai perceber um sentido irreal
No que você não vê no seu ser social
Vai sobrar muito tempo, mas não é o ideal
Essa necessidade do café matinal

Talvez

E se formos capazes de reconhecer
E se de boa, de plano, sem muito entender
O que seja o amor em qualquer outro ser
Nesse trato divino que um dia foi você

Mesmo sendo um delírio é o que eu quero ver
Se eu penso, existe, eu não quero nem saber
Já cansei de ter medo de como e porquê
Passos lentos me acalmam e é assim que vai ser

Talvez

segunda-feira, 1 de março de 2010

Take it like a praise

So if you're through with what I've made,
I've gotta take it like a praise,
take it like a praise

Don't you know what to say?
I've already take it like a praise,
take it like a praise

But if my choice's brought the blame,
I've gotta take it like a praise,
take it like a praise

So if it's better quit to play
I've already took it like a praise,
took it like a praise


quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O homem sem palavra

O homem sem palavra advoga em causa própria
O homem sem palavra não repete a mesma história
O homem sem palavra se intriga com seu reflexo
O homem sem palavra está se lixando para o nexo

O homem sem palavra assina coisas sem ler antes
O homem sem palavra roga a Deus igual aos dantes
O homem sem palavra mesmo longe está por perto
O homem sem palavra abre o olho, fica esperto

Mas o homem sem palavra é patrono do acaso
O homem sem palavra: "corro muito, não me atraso"
O homem sem palavra anda sonhando acordado
O homem sem palavra não sabe ao certo o que há de errado

Bala danada, balada nada, bola do nada, bolado nada.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

Miramar


Wondering at the beat,
The beach stone blues
She never feels the heat
Or what'do to pay her dues

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

conto da pedra preta

VÊ SE ME ESCREVE NESSE INVERNO

CAPÍTULO 1º (DE ABRIL)
De repente ficou tudo no ar; naquele ar denso, tenso, pesado. Bem a
cara do falecido. Assim ele era: Espetaculosas manchas azuladas nas
pálpebras inferiores, fazendo multiplicar sua idade; gigantescos dentes
amarelados e lábios meio arroxeados, com certeza devido ao excesso de
tudo, principalmente de tabaco. Olhos sempre arregalados, como se a
cada segundo ele estivesse arriscando sua vida em alguma aventura
perigosa. Mas os olhos não demonstravam medo hora nenhuma. Nem um
pouco. Pelo contrário, juntamente com aquela voz grave, pigarrenta,
sussurrante e ao mesmo tempo artística, olhos e voz formavam uma
verdadeira parceria, pois, quando ele falava, todo o movimento
gesticulado pela boca, ou melhor dizendo; o som saía da voz, mas quem
realmente parecia estar falando eram os olhos que no seu brilho púrpuro
constante, mesmo quando o som da voz parava, eles continuavam falando,
falando, falando. Isso foi presenciado numa roda de notáveis onde o
conheceu, onde a intimidade não fazia média com ninguém ou era
simplesmente descartada. Como se tudo estivesse numa boa, mas de uma
hora pra outra o tempo pudesse fechar. Esse era o famoso Miguel do
'Burning Shoes', a banda em que ele era baixista. Nunca foram amigos
de fato, mas de vez em quando rolavam uns contatos necessários.
Todos estavam visivelmente alterados, e o lugar era um botequim
literalmente curtido na sujeira do tempo, com uma mesa de sinuca do
lado de fora, muito mal localizado numa transversal às ladeiras do
bairro Vinhosa, bem ali, logo abaixo donde o segundo maior monumento
brasileiro do Cristo Redentor, no alto do morro que media a cidade,
solenemente dava as costas para o que quer que acontecesse. Mas ninguém
estava jogando, talvez nem bola tinha, nem taco. Três rapazes sentados
em cima da mesa, quer dizer, três figuras raríssimas para o resto da
cidade. O dono do estabelecimento por detrás do balcão e mais quatro
figuras em pé tomando cerveja, incluindo o Miguel, que, com sua jaqueta
jeans costumava ter sempre algo ilícito dentro dos bolsos, na intenção
de faturar um qualquer. Todos conversavam num ritmo acelerado. E como
dito, o local era nada limpo. Tão sujo quanto as coisas que saíam das
bocas dos caras. Ali não era recomendado ficar mais que dez segundos. Estava sempre presente a possibilidade de por tudo a perder caso passasse uma patrulha da
polícia na ruela que emendava na trilha do botequim.
Na verdade quem estava realmente comandando a situação toda era o
próprio dono daquela espelunca. Um sujeito cascudaço beirando os
sessenta anos, calvo e rugas exageradas no rosto. Tinha também aquele
jeitão de malandro carioca com gírias do arco-da-velha. Marco Antônio
ficou sabendo do tal movimento do botequim por alto. Então, como era de
praxe toda sexta-feira dar umas voltas pela noite e fazer qualquer
coisa, principalmente a cabeça, não conseguiu pensar em nenhum outro
lugar que pudesse ser mais interessante. Acompanhado apenas de um
cigarro varejo apagado como motivo para iniciar um rápido diálogo
quando fosse pedir fire emprestado ao dono do estabelecimento, antes de
chegar no assunto principal, é lógico. Aí, na exata hora em que ia se
dirigir ao cascudaço, o Miguel ali do lado acendendo o seu cigarro
também, talvez tenha sentido a fissura no ar e fez a camaradagem de
oferecer o isqueiro, e sem mais nem menos puxou conversa sobre marcas
de cigarro e depois sobre marcas de cerveja e de repente num estalar de
dedos já estavam em cima da mesa de sinuca fumando um baseado com a
rapaziada, que dentre os quais um acabara de apertar e tinha dado o
grito de guerra: “Quem vai?” Obviamente todos, inclusive o Malando
Carioca, como era conhecido o velho do botequim, mandando logo que se
comunicasse ao pé do ouvido do novato “se precisasse de qualquer
‘parada’, estava no lugar certo”.
Enquanto fumavam, Marco Antônio continuou dando atenção ao bom
papo de Miguel, que embora de aura sinistra, tinha interesses bacanas
muito além da chapação, dentre estes, o contrabaixo elétrico que tocava
com paixão na banda Burning Shoes. As coisas perderam novamente a
nitidez, esfarelando-se o sonho, acordando Marco Antônio.
Ainda meio embriagado do sonho da noite passada e não acreditando estar
sorrindo pra uma manhã tão nublada conforme se depreendia da refração
de luz na janela de seu quarto, levantou-se e se dirigiu à cozinha do
apartamento. Uma cozinha minúscula, mas com tudo que precisava para
refazer-se. Do armário embutido suspenso, retirou um filtro de papel
102 e ajeitou-o na cafeteira elétrica. Como de costume, retirou a única
colher de chá, escondida entre os talheres maiores no escorredor de
pratos, para a costumeira dose de quatro colheres de chá cheias de café
e uma e meia de achocolatado em pó – que usava em substituição ao
açúcar puro – para um copo de água. Enquanto a água fervente passava
pela mistura, Marco Antônio retirava num compartimento da porta da
geladeira um pequeno sólido envolto em papel alumínio. Concentrado,
ouvindo o borbulhar da cafeteira, enrolava em seda de cânhamo um
pequeno cigarro para complemento do saboreio do café.
Descendo o lance de escadas do primeiro andar onde morava em seu
prédio, assim que abriu o porteiro eletrônico, viu passando na rua um
sujeito cabeludo de bicicleta. Uma velha bicicleta vermelha sem
garupeira, barra circular. O sujeito estava com pressa, pedalando
rapidamente, mas o reconhecera ainda antes dele virar a esquina, mesmo
estando tão diferente com aqueles cabelos encaracolados esbarrando nos
ombros. ‘Era o Miguel?’ Tamanho foi o susto que mal pôde sorrir de
alegria matinal, há um ano exatamente recebia a comunicação de um
enterro à tarde, do próprio, a notícia trágica que Miguel tinha sido
baleado no Rio de Janeiro devido a um envolvimento de fatal combinação:
drogas e dívidas. O velório seria de caixão lacrado e tudo o mais, e o
enterro seguiria apressado e sem delongas. Marco Antônio não fora, mas
essa história da pressa e do caixão lacrado, ele ouviu da boca de um
carinha famigerado pra lá de conversa fiada. Acreditou porque sabia que
o corpo já estava sem vida havia quase uma semana. No entanto, o
primeiro de abril reforçava, de alguma forma, a fama de Miguel de muito
doido.
E foi bem assim que o vento trouxe a velha história do fim dos tempos.
Aquela é a rua que vai dar na da central de abastecimento de energia
elétrica da cidade, às margens de um ribeirão infectado por todo o
bairro originário da CEHAB, o loteamento do Estado, um bairro que
cresceu assustadoramente nos últimos anos. Ali, acolá leito acima,
quando chove torrencialmente nos verões, torna-se um alagadiço de
proporções assustadoras, com toda a base dos conjuntos de circuitos
elétricos de tamanhos consideráveis submersos. E esse vento anuncia uma
tempestade fora de época. Tempestade de outono? Não, não se concebia o
fim dos tempos de forma tão direta. Havia de se haver tempo pro tempo
acabar, em definitivo.
Ali ele finalmente se sentiu só. Praticamente trinta anos de idade,
pura razão. Foi bem nesse câmara lenta da realidade que Marco Antônio
decidiu que por hoje não. Que só por hoje. Essa ele ouviu dos
Narcóticos Anônimos, aquela da Comunidade Canção Nova, a dele, ‘o
futuro tá aqui hoje’. Mas essa ele tirou de um petardo sonoro dos
Ramones. Mas o que isso tinha de relevante diante da missão de salvar o
momento? O momento que escureceu bastante àquela hora da manhã. O
nublado de cinza claro passava ferozmente a um azul escuro carregado de
tons acinzentados de precipitações prontas para despencar sem piedade.
Era melhor voltar para o apartamento que estava a vinte passos atrás
ainda.
De volta ao prédio, hesitou um pouco diante da porta do apartamento,
uma trovoada decidiu por ele o retorno. Era mais um sábado de chuva,
primeiro de abril, era também aniversário do enterro de Miguel. Com
esse pensamento intrigante, fosse porque o famigerado baixista do
Burning Shoes fora mesmo um grande mentiroso, fosse por causa do sonho,
Marco Antônio voltou a abrir a geladeira e pegar de novo o pequeno
tablete de fumo. Dirigiu-se à pequena sala do conjugado e sentado ao
sofá ficou olhando a pequena quantidade de erva prensada, pensado se
sua decisão incluía os radicalismos comuns a tal atitude, ou seja,
desfazer-se do bagulho por uma clássica descarga sanitária. Não, não o
faria. Apertaria o que lhe sobrava, fumaria ali, escolhendo uma trilha
sonora apropriada para o momento. Sim, essa a decisão acertada.
Como uma grande salva de palmas, a chuva começava a cair
torrencialmente. A violência das águas descendo do céu acelerava-lhe os
movimentos. Acabou escolhendo um cd que continha vários arquivos mp3.
Começava com uma seqüência de nove canções de uma banda argentina de
nome En*, assim, com asterisco, cujas músicas baixara da internet. O
baseado ele enrolou rapidinho, e a voz da garota que cantava, à medida
que ele fumava, começou a lembrar-lhe Maria Luíza. Onde estaria? Fazia
quase dez anos que não a via.
A energia elétrica faltou logo após um forte relâmpago. Um taxista
havia sido assassinado. Aliás, de dez anos para cá, vários taxistas
foram assaltados ou assassinados em Itaperuna, desta vez, em especial,
Marco Antônio sentiu-se perturbado com o crime que todos estavam
comentando. Estes dois pensamentos, Maria Luíza e o taxista assassinado
por um forasteiro, invadiram a mente de Marquinho, que não desconfiava,
nem percebia qualquer ligação entre uma coisa e outra. Mas num universo
de átomos e idéias, nem sempre é possível estabelecer conexões que
fujam à razão aparente. Aproximou-se da janela para observar o
temporal.
A chuva caía forte, muito forte naquele primeiro de abril. Marquinho
lembrou, meio alto, que ainda era manhã, que o verão já se fora havia
dez dias, mas não cabia uma tempestade daquelas proporções naquele
momento. Da janela do primeiro andar, ele tinha a altura duns cinco
metros no máximo até o chão da calçada. E o tanto que caíam as águas do
céu em torrentes, já lhe dava a impressão de que dava para pular de
ponta de sua janela na rua agora leito de água represada pelos
quarteirões próximos à subestação de energia elétrica de Itaperuna, já
totalmente submersa a essa altura. Os granizos começavam a pipocar no
vidro blindado da porta corrediça da sala. O chão da sacada estava
repleto deles.
De repente a cidade parou diante de uma calamidade súbita, inesperada
para a segunda semana do outono. Inevitável não deixar de pensar no
fenômeno das alterações climáticas do Planeta. Aquele dia era pra ser o
da última baforada na canabis, mas seu pensamento acabou invadido pela
idéia da escassez do costumeiro cigarro relaxante. Falou consigo que o
Marco Antônio ia gripar e incorporar o fraco Marquinho. “Caralho, se eu
arriar de virose, tô fudido!” Ficou com medo e lembrou que era domingo
e não sábado. Tinha convicção de que não sucumbiria ao ‘etilismo
bancário’, mas reconhecia, com superioridade, que podia se ferrar com
uma febre em plena calamidade pública.
“Tudo bem, essa é a última vez, caso fortuito”. Pronto, seu cérebro já
estava isento da culpa sui generis. “Dois engoves, uma pedra de 50 e um
fino de lei. Marquinho, o caralho!”, primeiro de abril, mandou mensagem
para o celular do vizinho que estabelecia contatos escusos no seu
prédio.

ESPÍRITO SANTO
Maria Luíza, em meados dos anos noventa, fora namorada de Marco
Antônio. O infortúnio de um aborto, porém, pôs fim ao namoro. À época
ela contava com dezoito anos de idade, Marquinho, como ela o chamava,
iniciava a lira dos vinte. Os detalhes do aziago acontecido não se
relatam ainda. Certo é que o crime de ambos rompeu-lhes os laços de
afeto, e levou Luíza a sair de Itaperuna para morar com uma tia em
Vitória (ES). A intenção maior seriam os estudos, precisamente a
Universidade Federal do Espírito Santo. Só que além de Luíza naquele
ano não haver conseguido pontuação suficiente para classificação às
vagas disputadas para o curso de Arquitetura e Urbanismo da UFES,
entregara-se à paixão por um jovem no final de semana seguinte à do
concurso vestibular.
Luíza vira naquele rapaz a oportunidade de esquecer todas as mazelas
daquele ano que findava. Naquele fim de semana, Luíza fora, a convite
de sua tia – uma senhorita solitária de seus trinta e poucos anos à
época – a uma festa na Pousada da Praia, na Praia do Canto em Vitória.
Lá ela conheceu o sujeito que mudaria sua vida radicalmente, mais uma
vez.
Naquela noite, a mesa em que estava com sua tia estava composta de mais
duas amigas desta. A falta de interesse na conversa fazia com que Luíza
deixasse o olhar percorrer todo o aprazível local da Ilha de Vitória. O
encontro de seu olhar com o do jovem que bebia desacompanhado fora
fatal. A hipnose passional aproximou o rapaz da mesa, que convidou
Luíza para beber com ele. Aos olhares curiosos das ‘tias’, Luíza
pediu-lhes licença e acompanhou o rapaz. Sua tia disse apenas que
estaria a noite toda naquela mesa, que não sumisse. Mas ela sumiu com
ele, desejando inclusive que fosse para sempre.
Dois ou três drinques depois de algumas trocas de gentilezas, Luíza e o
rapaz embarcaram em seu carro rumo à fronteira do Espírito Santo com a
Bahia. O jovem morava em uma propriedade rural no Município de
Montanha, naquele estado. Tudo aconteceu muito rápido. Até demais para
que Luíza entendesse as conseqüências de um envolvimento relâmpago e
profundo com alguém que acabara de conhecer. O fato é que não queria
estar perto de nada que lhe lembrasse a família, muito menos Itaperuna.
O jovem, com seu porte atlético e os cabelos à moda Chitãozinho e
Xororó – como ela o via – pareceu-lhe a pessoa perfeita para a almejada
mudança em seu destino quando, ao chegarem no sítio residencial do
rapaz, soube que ele vivia só desde que perdera os pais em um acidente
automobilístico. Ali ela ficou, juntou-se a ele, esqueceu-se de tudo e
de todos que deixara para trás. Mas o que parecia perfeito para si,
depois de dez anos de convivência, haveria de se tornar um pesadelo
para ela.

Júlio, como se chamava o rapaz, muito embora parecesse alguém de
respeito por aquelas terras, na verdade vinha depredando o patrimônio
dos pais falecidos da forma como bem entendia. Às vezes, Luíza
estranhava seu comportamento, principalmente porque ele dormia tarde e
sempre acordava com os galos. Mas como ela incorporara o papel de
dona-de-casa incondicionalmente, entregava-se cada vez mais à rotina
que lhe permitia esquecer o ano que estava por terminar. Certo dia,
Luíza já preocupada com fato de Júlio pouco procurá-la como mulher nas
noites temperadas daquele dezembro, percebera que ele emendara a noite
com a manhã. Foi pé ante pé até a cozinha onde ouvira algum barulho.
Não havia ninguém, mas a porta que dava para o terreiro estava aberta.
Foi lá para fora e viu seu marido dirigindo-se ao estábulo. À espreita
de seus atos, descobriu naquela manhã que se juntara a um drogadicto.
Sentiu medo e acabou derrubando uma corda que se encontrava pendurada à
porta do estábulo. Júlio virou-se, fungou com certo nervosismo e
perguntou-lhe o que ela estava olhando, se nunca vira cocaína na vida,
e ignorando sua feição assustada cheirou as outras carreiras que
restavam sobre a pedra de mármore da pia que havia ali. Virou-se para
Maria Luíza e foi a seu encontro. Esta permanecia de cabeça baixa um
pouco amedrontada com o estado de seu homem.
Júlio pediu-lhe que não se preocupasse com aquilo, que era só pra ter
mais energia que ele cafungava. Uma camionete que passava à distância,
de repente, preocupou Júlio que segurou no braço esquerdo de Luíza
conduzindo-a a para dentro de casa. Na cozinha ele disse:
- Escuta o que eu vou lhe dizer. Desde que meus pais morreram eu não
tenho sossego com o proprietário que divisa comigo as terras baianas.
Tenho certeza que ele vem avançando as cercas, roubando cabeças do meu
gado. Já autorizei inclusive que meus empregados mandem bala em
qualquer pessoa suspeita que esteja rondando minhas terras. Não me
sinto seguro, Luíza, não me sinto.
Luíza começava a se sentir apavorada: - Mas isso que eu vi você
consumir agora mesmo, você o faz há muito tempo?
- Sempre fumei maconha, desde garoto, mas sei me controlar. Não se
preocupe. Só tenho cheirado por esses dias porque ando preocupado com
meu vizinho. Assim eu fico ligeiro e acordado. Mas eu acabo com ele
antes que ele acabe comigo. Não se preocupe, por favor, isso é assunto
de homem.
- Ai, cara, sei não. Nunca me senti à vontade perto de pessoas que usam
drogas. Você não teme a polícia?
- Polícia? Em Montanha todos me conhecem. O Delegado era muito amigo do
meu pai. Tá comigo, amorzinho, tá com Deus.
De fato, no início daquele dezembro, um episódio dera a Júlio mais uma
vez a certeza da influência que seu pai exercera por muitos anos por
aquelas bandas. Júlio, querendo dar um tempo no pó, comera uns
cogumelos no pasto e seguiu fumando sua maconhazinha até o ribeirão que
atravessava a propriedade. Sentiu-se bem disposto e o calor
insuportável daquele dia dera-lhe vontade de banhar-se nu. Acontece que
a onda tóxica dos cogumelos o deixou confuso enquanto nadava e o medo
de afogar-se o levou a sair do ribeirão apavorado. E em meio ao pavor,
Júlio não conseguia encontrar, nem lembrar direito onde deixara suas
roupas juntamente com a carteira e algum dinheiro. Como não encontrasse
seus pertences, acabou voltando nu para casa. Alguns empregados da
propriedade o viram da forma que viera ao mundo, correndo em direção à
casa e, envergonhado, mentira para Maria Luíza dizendo que fora
assaltado, certamente por alguém a mando de seu vizinho. Disse então a
Luíza que procuraria o delegado na cidade, pois possuía meios de saber
quem lhe roubara.
Poucos dias depois um inocente, para aquele furto, era preso, pelos
mesmos dias em que um empregado seu encontrara suas roupas caídas entre
algumas pedras às margens do ribeirão. Seu orgulho, porém, o fizera
repreender o empregado que todo feliz lhe entregara as roupas e a
carteira, impedindo desta forma que inocentasse o pobre diabo
indevidamente preso. Sua palavra não pudera retroceder. Era um homem
importante desde a morte de seus pais.
E foi para esquecer um pouco a maldade daquele ato, que Júlio foi até a
capital, onde conheceu Maria Luíza e se vira envolvido. Esta não teve
mais paz quando soube da drogadicção de seu prematuro companheiro. E a
discussão fora inevitável, o que só aumentou as paranóias de Júlio, que
insinuara o adultério a Luíza, que viu-se então em completo desespero.
Armado de sua estupidez, Júlio empurrou Luíza e saiu batendo a porta da
cozinha em direção à sua VW Saveiro.
Naquele dia Julio estava por conta de seus demônios interiores, e a
certeza de que seu vizinho e sua esposa tramavam contra si fez com que
ele saísse com o carro em disparada e rumo incerto.
Logo Júlio pegou a BR próxima para correr o Espírito Santo, na
intenção, dentro de sua viagem errada, de seguir até São João do
Paraíso, no Rio de Janeiro, onde morava a irmã de sua mãe. Júlio
carregava em seu carro uma pistola .40, além de vários comprimidos de
moderadores de apetite. Transpôs o itinerário que seguia pela costa que
corta a mata costeira nativa, cujas extensas faixas de areia abrigam o
Projeto Tamar das tartarugas marinhas por onde, depois dos limites
territoriais de Vila Velha, seguiu por Guarapari até Marataízes.
Atravessara praticamente toda a costa do Espírito Santo, e quando o
sono ameaçou bater à altura de Iconha, parou num posto de gasolina para
se alimentar - carnes, salada de verduras e legumes, pimenta e duas
cervejas - oportunidade em que tomou dois rebites e voltou a seguir
estrada. Ao final de dez horas de viagem estava cruzando a fronteira em
Bom Jesus do Norte do ES com Bom Jesus do Itabapoana no RJ.
No cruzamento deste Município com o de Itaperuna, após conversar com um
caminhoneiro no restaurante do cruzamento e obter informação se havia
maconha para comprar no morro do bairro Vinhosa. Júlio achou por bem
pegar a direita até Itaperuna antes de seguir para São João do Paraíso.
Sentia uma vontade imperiosa de fumar, mas em Itaperuna seu carro
acabou fervendo quando se dirigia ao bairro Vinhosa. Ele já conhecia
Itaperuna, e chegar à Vinhosa parecera-lhe demorado, haja vista o fato
desse bairro ficar no lado transversal da área urbana no sentido em que
ele viera, por isso ele correu, na estrada e na cidade, pra chegar à
Vinhosa, mas o carro ferveu, não agüentou tanto tempo sem que se
trocasse a água do radiador. Desesperado mas aceso, porém, conseguiu
ajuda para levar o carro até uma oficina na Rua Vinhosa, a mais extensa
do bairro, que percorre toda a encosta dos morros daquele lugar. Deixou
o carro por lá e voltou para o centro da cidade, a passos largos,
seguindo as calçadas que desembocariam no calçadão do centro da cidade,
onde avistou um ponto de táxi de frente à Igreja Matriz Católica.
- Senhor, quanto tá a corrida até São João do Paraíso? Preciso chegar
lá com urgência – perguntou a um senhor que flanelava o pára-brisas de
seu automóvel de aluguel.
O taxista, observando a urgência do rapaz que lhe pareceu bem
apessoado, disse-lhe que por oitenta reais fazia a corrida até lá.
Júlio lembrou da maconha e pediu que o taxista fosse com ele primeiro à
Vinhosa, ao ‘Morro da Vinhosa’, mas o taxista lhe disse que a Vinhosa
tinha vários morros, que ele precisava ser mais claro. Júlio percebendo
possibilidade de nada achar, pediu ao taxista que tocasse logo para São
João então.
O taxista franqueou-lhe a entrada e enquanto dava a volta para pegar a
direção, Júlio tomou mais dois comprimidos. O táxi seguiu viagem e mais
ou menos à altura do restaurante que marcava o fim do perímetro urbano,
o Caiçara, Júlio percebeu que sua carteira não estava consigo, mas no
porta luvas do carro, lá atrás na cidade que começava a se distanciar.
O desespero bateu-lhe ainda mais forte, e ele acabou dizendo ao
taxista, já de pistola empunhada, que estava armado, mas que só queria
chegar em São João, que lá chegando liberava o assustado condutor. Mas
o taxista apavorou-se e, com medo de morrer, freou o carro bruscamente
fazendo com que Júlio batesse a cabeça contra o pára-brisas, momento em
que o motorista aproveitou para tentar desarmá-lo. No combate, a arma
disparou e acertou o saco escrotal de Júlio, que então desvencilhou-se
de seu adversário e disparou dois tiros à queima-roupa no taxista.
Apavoradíssimo, Julio desfez-se das próprias calças e correu mato
adentro, com a pistola em punho, pedindo socorro na primeira casa que
viu. Porém, a senhora à janela, vendo aquele homem nu da cintura para
baixo, com a cueca ensangüentada, fechou a janela num grito de pavor.
Júlio não estava agüentando de tanta dor e voltou para o meio da
estrada, onde, de arma na mão, parou o primeiro veículo que vinha no
sentido contrário, de volta a Itaperuna, um transporte coletivo. O
motorista vendo aquele sujeito semi-nu, armado, fazendo sinal no meio
da estrada para parar, não teve outra opção senão prestar auxílio ao
desgraçado. Júlio entrou no ônibus da Brasil, o motorista disse que ele
precisava ir para o hospital, e Júlio, já sem forças, agarrado em sua
arma, caiu no meio do corredor do coletivo. A essa altura a polícia já
chegava ao ônibus. A muitos quilômetros dali, naquele fim de tarde,
Luíza, terrivelmente só, naquele fim de mundo, lembrava de Marquinho,
com ódio e paixão.
Ainda no mesmo dia, por alguma lógica, o pensamento de Luíza
desencadeara o inevitável. Mas alguém, talvez de forma propositada,
talvez por puro acaso, interferia e adiava esse reencontro, mergulhado,
absorto que estava, instalado numa barraca de camping dentro do bosque
que Júlio batizara ‘Florestinha’. Era Miguel, que conhecera Júlio em
Itaperuna, numa noite, no Salute Bar. Uma noite em que se reuniram
vários compositores da contracultura itaperunense para beber,
conspirar, galgar as alturas, como era a praxe no início dos anos
noventa, quando o castelo da indústria fonográfica estava recém-tomado
pela banda Nirvana, calando o pop de forma ruidosa, dando a certeza de
que todos estavam no caminho certo. A noite em que Miguel anotara o
endereço, com todas as referências e pormenores da casa de Júlio.
O mesmo Miguel que precisara desaparecer da vida oficial, das notas
oficiais, dos autos, do mundo. Que resolvera procurar o cara que
conhecera no Salute Bar, em Itaperuna, que lhe falara de uma
propriedade com uma nascente maravilhosa que desembocava num açudinho
ladeado de belas pedras. Onde estava aquele maldito guardanapo? Miguel
revirara todas as suas coisas amontoadas na parte superior do velho
armário embutido daquele quarto, na madrugada em que fadara a
desaparecer. Morava à época num cubículo no Centro de Niterói, numa
pensão situada numa rua estreita, num moquifo entre os arranha-céus.
Estava lutando contra a tentação de deitar na cama, o sangue intoxicado
de Rohypnol, brigando contra o sono, mas com paranóias suficientes para
se manter acordado.
Permanecia acendendo um cigarro no outro, um maço por acabar, mais um
na mochila encardida. O que estava mesmo procurando? Sentou na cama
bagunçada, quebrando mais um pedaço do estrado. “Mern..da” – resmungou.
“Ah, é, o maldito guardanapf...”. Abriu a mochila e pegou a carteira,
revirou, tirou tudo quanto é papel inútil que guardava não sabia por
quê. Um bilhete de passagem, alguns flies de diferentes texturas,
cartões dos mais variados serviços e lojas de instrumentos musicais.
Muita coisa, menos documentos. Enfiava os dedos pelos vários
compartimentos, uma medalha de Nossa Senhora – “quem botou isso aqui?”
– Ali, achara a porra do papel, do guardanapo, tava todo manchado, mas
dava para ler: “BR 342, vira à direita na última estrada de chão antes
da divisa com MG, segue rumo ao Município de Montanha, última
propriedade antes da divisa com a BA”. Guardou com cuidado de volta na
carteira. Precisava vazar imediatamente, um carro o esperava próximo a
um ponto final dos ônibus urbanos ali perto. Levaria consigo os dois
celulares de tecnologia gps e o laptop, de conexão sem fio, da
organização clandestina pra qual jurara fidelidade, além da prática
barraca de camping acondicionada na bolsa com alça.
Era hora de partir, estava tudo arranjado desde um ano antes. Sua mãe,
sua única cúmplice para o reconhecimento do corpo no IML de Niterói
completara a missão de proteger a vida do filho a qualquer custo.
Dissera-lhe que se não fizesse isso por ele, poderia considerá-lo
morto...
– Bota esse cd aí, eu vou na frente – disse Miguel com a mão
pastosa na maçaneta da porta do carona. Dentro do carro ninguém
respondeu coisa alguma. Permaneciam em silêncio por trás dos
respectivos óculos escuros. Com paciência, o sujeito do banco do carona
levantou-se ante a porta que Miguel já abrira, dirigiu-se à porta
seguinte do Vectra 2.2 de cor escuro-fosca, abriu-a e sentou-se ao lado
de uma mulher de cabelos negros presos à nuca, num rabo-de-cavalo
molhado, no banco de trás. Uma gota d’água sobre a cervical saliente,
evidenciada pela luz mercúrio do poste próximo, denunciava que ela
acabara de virar o rosto para sua janela. A madrugada avançava, a luz
do dia ansiava por dar as caras.
Deixando Niterói para trás, Miguel cantarolava sozinho, num
dueto imaginário com Stephen Malkmus. O álbum acertado do Pavement no
cdplayer, como ele julgava, perante o silêncio de seus três
companheiros de viagem: “fly fly fly fly fly fly fly, don't try try try
try try, it's a brand new era, it feels great, it's a brand new era but
it came too late…” O veículo seguiria para o Nordeste, mas Miguel
ficaria na estrada antes da fronteira do Estado da Bahia.

AMIGO OCULTO
Naquela tarde, no churrasquinho em frente ao Banco, Marquinho ficou
sabendo que haveria uma confraternização dos que faziam o rock
alternativo no final do século passado em Itaperuna. Seria no GVI, como
era conhecido o espaço no passado recente. Tratava-se de um solar, cuja
área externa, coberta de uma antiga videira, oferecia uma sombra muito
agradável de dia e uma certa obscuridade à noite. Era o lugar perfeito
para o desenvolvimento das idéias que fervilhavam na cidade por aqueles
anos, relembrou. Haveria uma comemoração, que era realizada pelo grupo
que sempre retomava as atividades artísticas ao fim dos verões de cada
ano, atravessava o curto inverno itaperunense e se estendia até o fim
da primavera.
Era seu primeiro ano empregado de forma estável. O Banco do Brasil já
não era mais lá essas coisas como o fora nos anos oitenta e início dos
noventa. Mas era uma atividade estável. Isso ainda fazia muito sentido
num lugar como Itaperuna no que diz respeito à segurança e à
tranqüilidade. Pediu dois de porco bem passados e dirigiu-se ao colega
que já bebericava uma cerveja gelada, curtindo o contraste do ambiente
refrigerado do Banco com o calor abafado de sua cidade, especialmente
próximo à chapa quente:
- Dosésses, você ‘tá sabendo que ‘tá marcada pra hoje mais à noite uma
reunião dos roqueiros daqui? ‘Cê sabe que aqueles caras fazem um som
até hoje nesta cidade, né?
- Sério, cara? Rapaz, lembro de todo mundo daquela época. Tem o quê,
mais de dez anos, não? - respondeu entusiasmado o colega dando um gole
sedento na bebida no copo descartável. – Ó, digo mais, hoje de manhã,
antes de olhar pra minha esposa, eu acordei me sentindo grande, cara.
Bela como ela é, você me conhece, sabe que eu a adoro. Ela não me viu,
e eu acho que não vai me ver tão cedo. Tô precisando me encontrar. E
não é viagem, bróder. Preciso diminuir minha dose de amor pela Diana,
velho...
Marquinho pediu-lhe um instante e serviu-se de um copo descartável, que
Dosésses de pronto pôs a encher. Os dois sentiram que beberiam ali mais
que o costume de uma ou duas garrafas de cerveja. Marquinho emendou –
cara, que é isso que você está falando?
- Acho que a gente podia pegar uma de cinqüenta, detonar ali no
banheiro do centro comercial e partir pra lá despreocupados. O Bitch tá
bebendo ali no Amarelinho. Que ‘cê acha?

No sítio em Montanha, a mais ou menos 500 km de Itaperuna,
Luíza sentia queimar por dentro naquele fim de tarde. Estava puta da
vida com a estupidez de Júlio. Queria nadar no açude gelado da fonte
d'água. Para não se torturar pensando no marido fugitivo, queria dar
para o primeiro homem disponível com quem topasse. Era isso que ela
estava achando que precisava para aquietar-se. À pouca luz do arrebol,
sob uma paisagem vermelha que ainda mais a excitava, sem sutiã sob o
vestido, ela tirou a calcinha sob a aba da roupa, deixando-a em cima de
uma das cadeiras da mesa do café, quando avistou um pedacinho de sacola
plástica com uma substância pulvurulenta dentro. Pousou o dedo
indicador molhado de saliva no pó e experimentou. Sim, só podia ser a
tal da cocaína. Espalhou na mesa de ardósia polida, tirou a carga da
caneta da cozinha e usou-a como canudo para aspirar todo o pó. De
havaianas no pé, saiu da solidão organizada de sua cozinha sentindo a
brisa daquele fim de dia de forma livre e solta, rumo à trilha
escondida da fonte ao pé do bosque na propriedade de Júlio.
Numa pequena clareira, mais para o meio da encosta arborizada,
Miguel conectava um cabo usb do laptop para o celular. Posicionou a
antena cilíndrica do dispositivo de tecnologia gps. Dentre os
apetrechos que Miguel trouxera na mochila, estava um dispositivo de
armazenamento de corrente contínua. Uma bateria de lítio recarregável.
Esteve carregando por um dia inteiro na única tomada do cubículo em que
morava no centro de Niterói. Plugou o dispositivo no laptop, abriu a
tela basculante de lcd, pressionou botão de energia por alguns segundos
e maravilhou-se com a possibilidade de começar tudo de uma só vez...
Ali ele tinha tudo o que precisava pra sua divertida e perigosa
aventura: fotos escaneadas dos idos dos anos noventa em Itaperuna, os
melhores mp3s, os vídeos mais raros, composições dele próprio em tudo
quanto é formato digital de áudio e vídeo. E uma conexão sem fios,
'wireless em banda larga', foi isso que ele ouviu da ong clandestina,
que naquele exato momento lhe deixaria online, com todos os contatos de
MSN cuidadosamente adicionados ao seu elenco de notáveis, tudo muito
vivo seu em seus arquivos no seu livro de notas eletrônico. Tentou uma,
duas, três vezes a conexão e nada. Resolveu esperar anoitecer mais um
pouco. Pensou nos dois últimos comprimidos do hipnótico que estavam no
bolso do bermudão. A idéia de tomar os dois e mergulhar no laguinho
gelado da fonte no pé do bosque - e de boiar tocando bronha - lhe
parecia perfeita. Tirou a camisa, o bermudão, desconectou o celular do
cabo e desceu com destino ao mergulho nu, de celular na mão.
A represinha da fonte situava-se pouco abaixo do nível da casa
de Júlio, no morro ao lado. Aproximando-se da margem no lado oposto ao
do bosque, Maria Luíza apressada tirou o vestido, concentrada num
mergulho sem hesitar. Na sombra do bosque, de pé sobre uma pequena
rocha, na quase certeza de não ser notado, Miguel deixou o celular na
superfície rochosa, avistou a beleza femina do outro lado da margem do
açude e aguardou seu mergulho, para em seguida fazer o mesmo. Só mirou
a trajetória e se atirou para dentro das águas frias da fonte
represada. Nadar, mirar nadando, a caminho da coordenada.
E ela viu a silhueta de um homem grande sobre a pedra ao fundo
do mosaico verde e natural, ela pensou em ilusão visual, e nadou de
fôlego preso pensando se ouvira ou não o estrondo de um mergulho de
homem pesado. A idéia ainda mais a excitava. Não demorou mais que
trinta segundos para ela sentir as ondas de uma submersão próxima dela,
parou o nado livre de súbito e sentiu segura e suavemente o
envolvimento de braços. Era de homem, a pele rude e almofadada de
banhas e pelos. Sim, era um homem que acabava de envolver-lhe o corpo
dominador sobre ela, agora muito quente e molhada por dentro e por
fora. Concentrando-se na intenção de boiar, Luíza soltou o fôlego de
uma só vez e o ensaio de um grito escapou-lhe.
- Sssssshhhh... Grita não, fica calma, estamos no meio do
açudinho e você está de carona em mim. - disse lhe Miguel descendo uma
das mãos suavemente, antes pousada sobre seus peitos arrepiados e
protegidos, por seu umbigo até sua vagina. E surpreendeu-se com a água
misturada ao lubrificante natural feminino. Sim, ela também queria.
Agarrado à região pubiana de Maria Luíza, remou com as pernas e o braço
esquerdo até a pedra de onde saltara. Ali já estava bom pros dois, e as
coisas melhoraram sobre a pedra, na natureza química do acaso.
Marquinho e Dosésses ganharam o calçadão pela faixa próxima,
atravessando apressados ao sinal vermelho do trânsito da cidadela, que
se fazia verde muito mais rápido que na Capital. Todos os dois
estudaram e observaram o bastante o trânsito da cidade grande nos bons
tempos da UCAM, no centro do Rio de Janeiro, quando moravam no Ingá, em
Niterói.
- Cara, lembro muito bem do Marcos Bedrim, o Bedrim, 'cê lembra? -
indagou Dosésses com toda empolgação possível.
- Maluco, parece que foi ontem. Ontem não; há alguns minutos, apenas.
Sem exagero. Mas, o que você disse? Ah, sim, o Bedrim. Que é que tem?
- Não, deixa pra lá. Cara, eu vou voltar, preciso falar com a Diana.
Vou embora, valeu, valeu.
Todos os dois travaram sob o efeito do alcalóide de procedência
duvidosa. De repente, falar parecia inconveniente ou falta de
gentileza. Em silêncio, afastaram-se pelo calçadão, e Marco Antônio
seguiu até o acesso à longa transversal que longamente serpenteava o
Morro do Cristo Redentor de Itaperuna. Os 'garotos vazios de
itaperuna', como eram jocosamente conhecidos na última década do século
XX, reuniam-se há mais de uma década na vivenda superior, onde havia a
velha videira. O solar de um velho fazendeiro falecido, de bom coração,
que fizera a vontade do primeiro neto, quando no leito de morte:
instrumentos musicais e amplificadores. Em silêncio, Marquinho chegou
ao solar. Da rua dava pra ouvir ruidosas melodias familiares de muito
bom gosto musical.

Gozaram juntos durante um bom tempo assim que ela começou a
contrair-lhe a vagina molhada em absoluto, sobretudo naturalmente
gratos pelo acaso. Ela pousou as mãos sobre o tórax dele, levantou-se,
virou-se para o açudinho, lançou-lhe um último olhar acompanhado de um
sorriso de sincera satisfação. E mergulhou para nadar de volta,
vestir-se e voltar para sua cozinha. Miguel, com a vasta franja molhada
e embaraçada sobre os olhos , acompanhou cada detalhe de todos os
movimentos. Especialmente a habilidade daquela jovem mulher em
vestir-se caminhando apressada em seu rumo de volta. (...) deu dois
cliques na pasta nomeada DL simplesmente. Continha milhares de itens
dentre arquivos de áudio, vídeo e fotos. Com a ponta do indicador,
deslizou o mouse na tela até o botão virtual "executar tudo". Carregado
seu programa multimídia,repetiu a rotina da conexão. Agora sim, o
status de conexão confirmava seus desígnios.
Naquele mesmo instante, Merci sacava o laptop da mochila e um
dispositivo de conexão sem fio, cuja página inicial do browser era a do
próprio mensageiro , o famoso msn. Havia uma pop-up no canto superior
esquerdo da tela; a que surgia automaticamente na interface eletrônica
de quem era requisitado para adicionar um amigo virtual. O nick era
simplesmente amigo_oculto_BS. Só que BS, o Merci sabia muito bem que
era uma sigla adotada pelo Miguel quando tocava baixo no Burning Shoes,
nos dois ou três anos em que existiu, partilhando o baterista e
herdeiro do espaço conhecido por GVI, os Garotos Vazios de Itaperuna.
Como já acontecia há anos, alguém escolhia um disco de vinil
pra começar a compor o ambiente do cenário. Duas bandejas de disco de
vinil, em 33, 45 e 73 rotações, várias caixas e cubos de som, altos
falantes, graves e agudos, mais o laptop do Merci. Que já providenciava
uma superfície qualquer para continuar a teclar, sem pressa. Uma
cadeira de frente pro degrau da aérea isolada acusticamente do estúdio.
Um dos guitarristas, conhecido como Mikin, sacou vários dos mais
diversos cabos de conexão por fios. Em poucos instantes o cara botava
tudo pra funcionar. Nesse meio tempo, Scartempus, Marlon e Carmelinho,
o outro guitarrista, o baixista e o baterista, respectivamente,
geralmente se ocupavam das cervejas, da churrasqueira, da água e do
cdplayer do Marlon.
Ninguém mais daquele tempo, do final do século passado,
frequentava o GVI. Mas o Marquinho, que conhecia o Carmelinho desde
muito criança, era talvez em Itaperuna a única pessoa que sabia
realmente o que acontecia ali, na companhia veterana de uma banda de
rock brasileiro, conhecida simplesmente por Sonecca. Sem registros ou
quinze minutos de fama em sua história, laborando anos a fio, sem
trégua para a inspiração, fazendo uma ou outra aparição anual nos
limites do norte e noroeste do estado, só pra fortalecer e reforçar a
existência.
Enquanto o pessoal do som organizava o local, Marco Antônio
usava o laptop de Merci. Fechou o login do Merci e apôs o seu. Havia a
mesma popup, e acabava de aceitar a adição do amigo virtual e enviava a
pergunta intuitiva: “Miguel, é vc mermo?”. Houve alguns segundos
eternos até que amigo_oculto_BS lhe devolveu: “Sou, Marquim. Morto,
enterrado, mas vivo na interrede.” “Interrede?”, Marquinho permitia a
fluência, ao que, uma resposta que aguardava comandos de cortar e
colar, preencheu os limites de caracteres para tal. “Digital Livre,
para esta linguagem,vida boa, vida longa, a minha é melhor q a sua, com
certeza, mas vc pode e deve vir tb. Vc vai sumir do mundo aí fora para
existir de verdade em zeros e uns - cabe acaba... Cabe acaba! (...)”
Marquinho leu dinamicamente e devolveu: “E em q vc sugere q esse tp de
vida pode ser melhor do q a q eu vivo?” Miguel não tinha paciência para
xeque-mate: “Por exemplo, se eu disser q eu acabei de transar com a
Luíza, q vc pegava na época q ia aí no gvi, q q c me diz?” Marquinho
não viu graça no que leu: “Bom, uma transa virtual, por mais q imite
bem as sensações, não é igual à troca de afeto ao vivo e a cores”
Miguel foi além na provocação: “Minha vontade era mentir solenemente
pra ti, como hoje em dia reconheço este meu vício, mas eu comi ela sim.
Ela está mais gostosa do que parecia na época q vc ficava. Ou pegava?
Mas minha escolha me impede de dar detalhes.” Antes de esperar mais uma
provocação de Miguel, Marquinho desconectou-se do msn, olhou para os
parceiros sônicos e ouviu Scartempus perguntar se o repertório estava
pronto. Cada um posicionou-se e preparou o respectivo instrumento
musical. Merci aproximou-se do microfone, Marquinho deixou o laptop
aberto com o monitor voltado à sua visão, procurou o repertório
digitado nos 'itens recentes'. Mais um ensaio, mas desta vez, o Merci
pressentia que alguma coisa estava no ar, e o som veio com a força da
atmosfera.

VÊ SE ME ESCREVE NESSE INVERNO
Marco Antônio e Demercius, que se conheciam por Marquinho e Merci, eram
amigos de infância. Estudaram nos mesmo colégios e se diziam
responsáveis pelo movimento de composições de rock brasileiro ali em
Itaperuna. Quando acabou aquele ensaio, o Merci ofereceu carona ao
Marquinho que no carro contou-lhe sobre o Miguel e o que ele disse da
Luíza. Demercius olhou para a cara de Marco Antônio e de novo para sua
frente na direção. Marquinho já conhecia essa cara do Merci. Era quando
ele captava mais uma boa e sinistra melodia pelo ar, e Marco Antônio,
já acostumado ao velho amigo, respeitava e silenciava para não
interferir no gênio do Merci. Era quando ele captava mais uma boa
melodia pelo ar, e Marco Antônio, já acostumado ao velho amigo,
respeitava e silenciava para não interferir no gênio do Merci.
Aquele início de outono estava alternando chuva e sol num ritmo
constante, Merci deixou Marquinho no prédio dele a duas quadras da sua
casa. Marquinho não conseguia evitar a imaginação de tudo que fazia de
seu amigo um compositor numa cidade como a sua. Ele sabia que Itaperuna
já não era a mesma cidadezinha de passagem para todo mundo como o fora
na reta final do século passado. Agora era um pólo universitário que
caminhava decidido à auto sustentação, que vinha se afirmando a cada
evento do Merconoroeste. Lembrou do evento. E pensou num estande dos
Garotos Vazios de Itaperuna, com a simples sigla em azul escuro, GVI,
no alto do estande totalmente em preto, com a história das bandas, das
obras literárias udigrudis, das fotografias, grafites e artes plásticas
em geral. O Sonecca faria uma apresentação bem 'lounge' dentro do
próprio estande, num pequeno palco acarpetado montado no canto
esquerdo, junto às pick-ups do DJ 2U, que faria o som ambiente. Isso,
era a idéia perfeita.
Lá no sítio do Júlio, que agora era definitavamente a casa de Luíza e
Miguel, os dois se reconheceram e se viram, na leveza do presente,
muito convenientes um para o outro. A vida fazia muito sentido pra todo
mundo de repente, e Marquinho não tava a fim de deixar pra outra hora o
futuro. Tava mesmo na hora de acontecer algo de extraordinário. Foi
direto para o pc no seu quarto, conectou-se, contou toda a idéia para
amigo_oculto_BS, convidando-lhe, incentivando-lhe a um revival do
Burning Shoes. E como a mensagem seguiu num momento em que o suposto
Miguel do Burning Shoes estava 'offline', Marquinho perguntou-se se não
estava devaneando com toda aquela história. Relaxou, com a velha
sensação de dever cumprido. E mandou só mais uma: "Tipo assim, se vc
ler isso a destempo, vê se me escreve nesse inverno." Desligou o pc,
deitou na cama e pensou, pensou profundamente em Luíza, e teve certeza
que a vida em sua cidade era bem melhor quando fazia frio.
Marquinho nunca mais teve notícia de Miguel. O evento passou, o estande
fez, aconteceu, foi um sucesso, a idéia parecia que viera para ficar
mesmo. Já falavam inclusive no próximo e nos próximos. Marquinho
precisou fingir que não existia em si a idéia de Miguel e Luíza juntos
em algum lugar. E que isso de alguma forma fazia dele um garoto vazio
em Itaperuna. 'Bobagem', pensou, 'é inverno e tudo está muito bem. Nada que uma noite pra dormir bem e um
dia pra acordar feliz não resolva. Sentia-se muito bem com sua doce e
solitária vida.